Uma descoberta surpreendente em **Cabo Verde (MG) validou uma antiga lenda local, onde um detector de metais apontou a presença de uma possível corrente da escravidão** dentro de uma paineira centenária, marcando um achado de profunda relevância histórica e cultural. A investigação, iniciada por pesquisadores da história do município, confirmou as indicações da presença de um artefato metálico incrustado na planta. O ocorrido na pequena cidade do Sul de Minas evoca um passado marcado pelo regime escravista e traz à tona a potência das memórias transmitidas oralmente de geração em geração.
O enigmático fenômeno foi observado quando a árvore, objeto de estudo, “apitou” ao ser analisada por um detector de metais, fato registrado em vídeo. Essa paineira imponente, com um tronco que alcança três metros de diâmetro e se ergue na margem de um cafezal, poderia solidificar uma narrativa antiga profundamente arraigada entre os habitantes de Cabo Verde, um município que conta com apenas 11,4 mil habitantes.
A curiosidade acerca da história local levou os investigadores a interrogar residentes antigos do município de Cabo Verde, no Sul de Minas, localidade de aproximadamente 11,4 mil habitantes. Foi a partir desses relatos orais que a equipe de pesquisa direcionou a atenção para a paineira monumental. Esse desfecho se alinha perfeitamente com a busca inicial, cujo foco recaía sobre a valorização das memórias transmitidas oralmente, um elo crucial para preencher as lacunas deixadas por registros formais incompletos.
Detector revela possível corrente da escravidão em árvore de MG
A tradição oral sugere que o local onde a paineira se encontra servia como um ponto estratégico para castigos e para a negociação de pessoas escravizadas. De acordo com os “causos” transmitidos através das décadas, correntes eram utilizadas para aprisionar os escravos ao redor do tronco da árvore. Acredita-se que, ao longo de seu vasto desenvolvimento, a planta “engoliu” uma dessas correntes, mantendo-a escondida em seu cerne robusto.
A propriedade em questão pertence à família de Daniel Paiva Batista desde o ano de 1930. Situado no bairro rural Retiro, o sítio representa um modelo característico da próspera região cafeeira do Sul de Minas. Nele, há um antigo casarão construído em 1935, que foi reformado e transformado em uma área de lazer, atualmente disponível para aluguel por temporada. Batista compartilha que desde sua juventude escutava as histórias contadas por seu avô e tio sobre a árvore que resguardava um fragmento da história escravocrata local. Segundo seus parentes, a paineira centenária, então à beira de uma estrada, servia como um ponto para punir e negociar escravizados considerados “folgados”.
“Antigamente, quando se comprava os escravos e tinha dois ou três, por exemplo, em um lote de 20, que não era bom de serviço, eles amarravam com corrente nessa paineira e quem passava por perto comprava mais barato, se quisesse”, detalhou Daniel. Ele complementou que os escravizados “ficavam amarrados ali. A corrente era amarrada em volta do tronco. Aí conforme a árvore cresceu, a corrente ficou apertando até ser escondida dentro dela”. Essa narrativa instigou Daniel, que procurou comprovar a lenda que atravessou gerações em sua família.
Movido pela busca da verdade, Daniel entrou em contato com o professor de História Luís Eduardo Oliveira, um dos coautores de um documentário que aborda a trajetória da população negra no município de Cabo Verde. O historiador realizou uma visita à localidade e, utilizando um detector de metais, confirmou as suspeitas. Em um ponto específico do tronco da paineira, o equipamento emitiu sinais, indicando a presença de um corpo metálico oculto. Oliveira enfatiza que “não é qualquer detector, porque ele determina o formato e o material do artefato. E somente na linha da cintura é que o detector acusa esse artefato”.
A avaliação dos resultados é promissora para o professor. “Nós saímos do sítio com a seguinte informação: temos um artefato do período em que Cabo Verde era um centro econômico de abastecimento de mão de obra escrava, e ele tem características muito sólidas que nos leva a crer que é uma corrente com elos circulares de ferro fundido”, declarou Oliveira. Com base nesta análise, ele defende enfaticamente que o objeto permaneça intocado, abrigado dentro da árvore. Para ele, preservar o artefato em seu local original é vital, pois a árvore transcende a um mero ser vivo e se converte em um simbólico espaço de memória de Cabo Verde. Retirá-lo, argumenta, faria com que tanto a árvore quanto o objeto perdessem parte de seu significado histórico profundo.
A Resiliência da Natureza em Tempos Centenários
A bióloga Luciana Botezelli, que atua como professora no Instituto de Ciência e Tecnologia do campus de Poços de Caldas da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), salienta que a longevidade centenária de uma paineira não é comum. Geralmente, essa espécie apresenta uma expectativa de vida que varia entre 50 e 70 anos. Contudo, ela reconhece que existem registros de plantas que excederam essa média, demonstrando uma notável resiliência. Botezelli também valida a capacidade de certas árvores em englobar objetos que possam obstaculizar seu crescimento. “Muitas vezes, quando vai havendo o crescimento do tronco, se a árvore vai ficando muito apertada pelo material, ela passa a criar uma estrutura de envolvimento daquilo que está incomodando e retendo o crescimento dela”, explicou a bióloga.
Profundamente tocada pelo significado que a paineira assume, a especialista destacou a impressionante força da natureza. Em suas palavras, a capacidade da flora em metamorfosear um cenário de dor e sofrimento em uma majestosa árvore é encantadora. “Bonita história. Um local que abrigou tanta dor, tanto sofrimento dos escravizados, ser agora uma árvore tão linda quanto a paineira, com flores tão maravilhosas”, refletiu Botezelli.
Cabo Verde: Apagamento Histórico e o Resgate da Memória Escravocrata
A descoberta do artefato metálico na paineira de Cabo Verde emerge no contexto de um documentário lançado em 2023, que discute a presença negra e indígena na cidade. Produzido pelo historiador Luís Eduardo Oliveira e pela cientista social Lidia Maria Reis Torres, o trabalho revela a complexidade do passado do município. Fundado em 1762, Cabo Verde destacou-se economicamente pela produção cafeeira, que dependia amplamente da mão de obra escrava.
Apesar da proeminência histórica de Cabo Verde, os pesquisadores Lidia e Oliveira enfrentaram notáveis dificuldades na busca por registros documentais que pudessem elucidar a presença da população negra na comunidade. Oliveira explica essa lacuna: “Cabo Verde é uma cidade escravocrata e a classe econômica abastada dessa cidade contribuiu para o apagamento desta história. E esse apagamento foi sistematicamente feito para que não tivesse vestígio. É o conceito de institucionalização do esquecimento”. Tal estratégia de invisibilidade sistemática buscou silenciar um capítulo crucial da história local.
Nesse cenário de apagamento histórico, os “causos” e as histórias contadas de boca em boca pelos moradores de Cabo Verde revelaram-se fundamentais para os pesquisadores. Foram essas narrativas orais que auxiliaram no resgate de segmentos vitais do período. Lidia Maria Reis Torres descreve a experiência: “Eu sabia muito pouco sobre a presença do escravismo e fazendas. Os fazendeiros tinham uma limitação para falar sobre. Não tinham documentos e a gente sabe que existia. O que se tinha é muito esses “causos” que circulam, a oralidade, que uma pessoa vai contando para a outra, vai falando: ‘Ah, meu avô falou que tinha isso, alguém falou que tinha aquilo, mas nem sei se é verdade, é uma lenda’”, contou a cientista social.
Com a identificação do metal na paineira, pelo menos um desses “causos” ganhou peso de verdade. Embora a exata natureza do objeto permaneça uma incógnita, pois “não se sabe, pode ser que seja um prego, pode ser que seja qualquer coisa”, a pesquisadora comemora a validação das histórias orais. “Mas acho que essa marca oral de histórias que são repassadas de um período do escravismo é muito significativo”, celebrou Lidia, reforçando a importância do achado para a história e memória local.
A descoberta e sua contextualização se integrarão ao doutorado de Lidia Torres, abordando a “valorização da memória oral da cidade, desse passado afroindígena que foi apagado das narrativas oficiais, mas que sempre circulou nas memórias familiares”. Motivados e reforçados pela decisiva contribuição de Daniel Paiva Batista e sua emblemática árvore, os pesquisadores anunciam a continuidade de seus esforços para desvendar as camadas mais profundas da história de Cabo Verde. “Me importa menos a verdade absoluta dos fatos, e mais as histórias que foram repassadas por gerações”, conclui Lidia. Essa abordagem sublinha o compromisso com a busca e a valorização do passado oculto, enfatizando a voz da população, sobretudo dos mais velhos, como uma ponte para reconectar as narrativas excluídas e reverter o processo de apagamento histórico. Compreender a história da escravidão no Brasil, como essa revelação em Cabo Verde, exige consulta a diversas fontes de dados, incluindo plataformas de memória oficial como a da Fundação Cultural Palmares.
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A revelação da possível corrente da escravidão em uma árvore centenária em Cabo Verde (MG) não é apenas uma descoberta arqueológica, mas um resgate profundo da memória de um período sombrio da história brasileira. O detector de metais atuou como uma ferramenta crucial para validar antigas lendas orais, mostrando o valor da tradição transmitida de geração em geração. Continue explorando as riquezas e os desafios de cidades históricas e suas narrativas em nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Arquivo pessoal/Lidia Maria Reis Torres
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